sábado, 4 de outubro de 2008





Leiam este texto escrito por um professor de filosofia que escrevesemanalmente para o jornal O Torrejano.Tudo o que ele diz, é tristemente verdadeiro...O atestado médico por José Ricardo Costa



Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai terde fazer uma vigilância.Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso noelevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente,pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa.Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta.Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada,por isso convém justificá-la. A questão agora é: como justificá-la?Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficarpreso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma salado exame com a camisa vomitada, ababalhada e malcheirosa, é um atestadomédico.Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui doatestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doençapoderá justificar sua ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partirdeste momento, a situação deixa de ser divertida para passar a serhilariante.Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorrisode Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidadedopadre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que sópode serexplicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Osmesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto naziou o sucesso da TVI.O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente.Opresidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regionalsabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não estádoente.O próprio legislador, que manda a um p rofessor que fica preso no elevadorapresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca,do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útile eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temosde sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentiravárias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebiauma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e umapredisposição para sermos enganados. Mas isso é normal. Sabemos bem, depoisde termos chorado baba e ranho a ver o 'ET', que este é um boneco e quetemos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que emPortugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio umaprodução fictícia, provavelmente mesmo desde D.Afonso Henriques, que Deus meperdoe.A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamente mentirosos.Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados. Aliás, em Portugalé-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o quesignifica que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, numambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irálevar a mal.Fica ofendida se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar anódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi anódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que seique tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal queassim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (nãofalo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos ecom vidas de sonho.Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se aofim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramosfingir que aquilo é tudo verdade.Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes eculturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemosmalabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias aFortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias,temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado,entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões comchapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante omundo.Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficarpreso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa,antes que comece a vomitar sobre si próprio.

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